Por: Por Alexandre Kovacs
No site de leitores Goodreads existe uma relação que conta, até o momento, 320 edições diferentes cadastradas para “The Handmaid’s Tale” ou o “O Conto da Aia” como foi traduzido no Brasil e relançado ano passado pela Rocco com novo projeto gráfico de Laurindo Feliciano. Uma das distopias mais conhecidas da literatura, a obra publicada originalmente em 1985, ganhou novo fôlego trinta anos após seu lançamento, com a premiada adaptação para uma série de TV nos EUA lançada em abril/2017 que continua em produção, com previsão de nova temporada em 2018, assim como a recente eleição de um certo presidente norte-americano com plataforma política de extrema direita.
Afinal, como já escrevi antes por aqui, distopias sempre provocam maior interesse nos leitores do que as utopias. Posso falar por experiência própria porque já publiquei duas postagens semelhantes sobre o tema: “As 20 melhores utopias da literatura” e “As 20 melhores distopias da literatura”. Hoje, quando comparo os dois textos em termos de popularidade, constato que o desempenho das distopias é bem mais expressivo em termos de visitas e compartilhamentos. Será que a ficção que lida com sociedades sem esperança em regimes políticos totalitários é mais atraente ao leitor ou simplesmente a felicidade é um tema que não seduz mais as pessoas no século XXI?
A edição relançada nos EUA, devido ao sucesso da adaptação para a série de TV, conta com uma introdução inédita da própria autora que explica algumas peculiaridades sobre a gênese da obra. Segundo Atwood, quando ela começou a escrever o romance, durante o ano de 1984 (coincidentemente outra grande distopia de George Orwell), ela se propôs somente utilizar no livro eventos que já tivessem ocorrido antes na história da humanidade (assim como referências bíblicas) e tecnologias já disponíveis na época. A intenção era tornar plausível que um país de democracia liberal pudesse se transformar, de um momento para outro, em um regime totalitário teocrático, ainda segundo Atwood: “isto poderia ocorrer em qualquer lugar, tendo em conta as circunstâncias”.
Na minha opinião, uma das características mais marcantes desta distopia, que a autora insiste em chamar de ficção especulativa, é justamente a similaridade com eventos terríveis já acontecidos ou fatos em andamento na atualidade em muitos locais do mundo, como a perseguição a minorias religiosas, controle da liberdade de expressão política e religiosa, negação dos direitos feministas e tantas outras restrições à liberdade individual. Fatos que permitem imaginar sim a possibilidade de um golpe terrorista similar nos EUA, derrubando o Congresso e a Constituição e criando algo como a República de Gilead, um Estado que tem como base aparente o puritanismo religioso de séculos passados, a campanha contra a pornografia e a segurança pública.
As aias são consideradas como propriedades do Estado e tem a sua existência limitada somente à finalidade de procriação. Elas são encaminhadas para morar com políticos do alto escalão cujas mulheres se tornaram estéreis devido a acidentes nucleares e liberação de lixo tóxico no meio ambiente (situações plausíveis e recorrentes na atualidade, como a autora declarou). Elas são obrigadas a fazer sexo com esses homens durante um determinado período, sob a supervisão das esposas, até que obtenham sucesso na fertilização. Neste caso, depois do nascimento, o bebê se torna propriedade do casal e a aia é entregue a outro homem de forma a repetir o mesmo ciclo. As funções nesta sociedade são definidas pelas vestimentas como explicado pela autora no texto abaixo disponibilizado pela editora e traduzido do artigo doThe New York Times de março de 2017 (introdução da versão publicada nos EUA):
“Os trajes modestos usados pelas mulheres de Gilead decorrem da iconografia religiosa ocidental — as Esposas vestem o azul da pureza, da Virgem Maria; as Aias vestem vermelho, do sangue do parto, mas também de Maria Madalena. Além disso, é mais fácil ver o vermelho se por acaso você estiver fugindo. As mulheres de homens inferiores na escala social são chamadas de Econoesposas e vestem listrado. Devo confessar que as toucas que escondem o rosto não vêm dos trajes de meados da era vitoriana ou das freiras, mas da embalagem do produto de limpeza Old Dutch Cleanser dos anos 1940, que mostrava uma mulher de rosto oculto e me apavorava quando criança. Muitos totalitarismos usaram o vestuário, tanto proibido como forçado, para identificar e controlar as pessoas — pensem nas estrelas amarelas e na púrpura romana — e muitos governaram por trás de uma fachada religiosa. Isto facilita muito a criação de hereges.” — Margaret Atwood (introdução da versão publicada nos EUA).
Narrado em primeira pessoa por Offred (o nome é uma referência ao “proprietário” da aia, acrescentando ao nome de batismo masculino, “Fred”, um prefixo que denota “pertencente a”), o livro é realmente uma obra-prima de tensão psicológica. À medida que a narrativa avança, ficamos conhecendo detalhes da vida da protagonista antes do golpe que instituiu Gilead, quando ela tinha um companheiro e filha, até perder tudo e se transformar em uma aia. O livro mostra como “a sanidade é um bem valioso” que deve ser preservado a qualquer custo, mesmo em situações-limite.
Alexandre Kovacs, um engenheiro que adora ler e acumular livros. Para consultas sobre publicações e revisões críticas de originais, entre em contato: alexandrekov@gmail.com.